Suas mãos se agitavam, na
cadeira, tremiam, velhas, ossudas e pintadas de sardas escuras... Balbuciava,
olhava o nada, meio cego, ou talvez com os olhos já não mais materiais, não
levantou-se, não uniu-se ao grupo de idosos que recepcionavam as crianças, nem
sequer olhou para trás, desligou-se, sentado de frente para uma janela imensa
que dava ao jardim, lugar que não frequentava havia semanas, a colcha de
retalhos sobre as pernas tremia, suava, chorava, babava? O que quer que fosse estava
úmido e pálido; dormindo? Não... Estava atento, não se sabe a o que, mas
estava...
Elas
poderiam ter escolhido qualquer um ali, a senhora de cabelos alaranjados, que distribuía
balas, o velho ranzinza cujo desafio entre as crianças era fazê-lo rir, um ex-militante
com dezenas de histórias para contar... Tantos ali tão interessantes, tão mais
atraentes aos olhos astutos de criança, mas não...
-Aqui está seu remédio – A enfermeira se apoiou na cadeira
de rodas do velho, ele não tirou os olhos da janela, virou o copinho plástico,
engoliu seco e forçado, depois voltou a balbuciar, os paços pesados do menino
seguido por seu colega ruivo e avoado, ecoaram em seus ouvidos que já ouviam de
forma distorcida, as imagens piscaram em suas retinas, os paços das crianças tornaram-se
o trotar dos cavalos arrancando a relva do pequeno bosque, o velho chalé na
montanha e os cavalos selvagens, búfalos e alces que o circulavam, a aurora
invadindo seu lar pela janela, sua amada preparava-lhe o chá de ervas.
-Podemos fazer algumas perguntas para vo... O senhor –
Corrigiu-se o menino pela grosseria, o senhor tinha um sorriso de canto de lábio,
vendo sua esposa servir-lhe uma xícara do chá, sentia o sabor, o aroma, ainda
esquentava-lhe os dedos e o interior... A fumaça aconchegara-lhe o rosto porém
dissipou-se e levou consigo as lembranças, o velho inclinou a cabeça e os olhos
enxergaram os meninos embaçados.
-O que querem? Não vêem que estou fora do grupo que
pretendem entrevistar?
-Mas o senhor está na mesma sala que os outros...
-Mas não no mesmo ambiente, entenda... Ali há pessoas mais
interessantes...
-Mas me parece que o senhor é tão interessante quanto...
-Você não sabe o que diz garoto, não tenho nada a contar... Você
não sabe, você não sabe se tenho e...
-Seus olhos dizem que tem...
-Eu... – O velho foi pego de surpresa, tornou a olhar para o
crepúsculo avisando o início da noite, ele lembrou-se da cena, o bafo quente
tomou seu corpo, a fuligem, o cheiro de fumaça, o chalé tomado por chamas... Sua
armadura estava chamuscada pelo último sopro de um dragão com o qual lutara
desde jovem, quando finalmente cravara-lhe a espada em seu peito escamoso, o
dragão matara sua princesa amada... – Eu não tenho nada a dizer...
-Você foi um herói não foi?
-Não! Eu não fui! – Lacrimejou.
-Minha mãe me disse que o senhor era um grande herói... Minha
mãe me disse que salvou muitos, que era um guerreiro...
-Não... – O velho empurrou a porta de vidro a sua frente,
foi ao jardim, o vento estava forte e gélido, a tosse invadiu seus pulmões,
fora advertido a não sair, mas desobedecera, queria respirar um ar puro... O
menino seguiu-o sem muito pensar, o ruivo não notou, não estava interessado,
permaneceu na sala... Para ele era só um velho ranzinza e com cheiro de remédios,
mas o menino não se importava com seu cheiro forte, nem com sua forma de fugir
de tudo o que ele dizia, ele sabia que ele fora um dia, ele o admirava e queria
ser como ele... – Eu não pude salvá-la... – O velho disse antes que o menino se
colocasse a sua frente.
-Você fez o que pode... Minha mãe disse que não desistiu,
que tentou tirá-la de lá... Ela disse que você salvou muita gente...
-Não...
-Você tem medalhas, eu já as vi, já te vi no jornal também...
Eu quero ser como você quando crescer... Mamãe me deu uma farda no natal
passado! Sabia?
-Para! Eu não sou exemplo para ninguém! Eu a deixei morrer!
-A vovó tem orgulho de você vovô... Onde quer que ela
esteja... – O menino abraçou-o e voltou para a sala de estar do asilo para
idosos... O velho inclinou-se e chorou... Lembrou-se exatamente da cena,
salvara tantos aquela noite, mas não conseguira salvar sua amada das chamas, o
caminhão chegou tarde demais, moravam num chalé num local de difícil
acesso, ela adorava aquele lugar... Os olhos não quiseram mais ver, quiseram
apagar aquilo tudo, ele não pode salvar quem mais amava... Abandonou a farda,
se isolou, estava morrendo, por dentro, por fora... A chama matará sua esposa,
e a falta dela matou o esposo... A chama apagou-se naquela mesma noite, no dia
seguinte, entre lágrimas de orgulho e tristeza o menino foi aplaudido por seu trabalho
em homenagem aos bombeiros, em especial ao seu avô, seu maior super herói...